quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Trabalhos do poeta, de Octavio Paz



Uma linguagem que corte o fôlego. Rasante, talhante, cortante. Essa deve ser a linguagem do poeta.

Uma linguagem de aços exatos, de relâmpagos afiados, de agudos incansáveis, de navalhas reluzentes.

Uma dentadura que triture o eu-tu-ele-nós-vós-eles.

Um vento de punhais que desonre as famílias, os templos, as bibliotecas, os cárceres, os bordéis, os colégios, os manicômios, as fábricas, as academias, os cartórios, as delegacias, os bancos, as amizades, as tabernas, a revolução, a caridade, a justiça, as crenças, os erros, a esperança, as verdades... a verdade!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009


Atração

o que me atrai na mulher
é essa sua capacidade de poetizar a vida
com as pernas abertas
a atrair meu pênis para suas funduras oceânicas
onde poemas em ovulação

(Carlos Pessoa Rosa)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009


Burocratas te advertem que a aurora foi abolida por tempo indeterminado. Comunicam que o trigo e o vento serão exportados para o arco-íris.
Aconselham-te a esquecer
o corpo ensangüentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai sobre aqueles que semeiam dúvidas. Mandam esvaziar tuas palavras de toda a possível reminiscência.
Burocratas te fiscalizam do alto dos edifícios, escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.

Francisco Carvalho

cena do filme: "Kafka" de Steven Soderbergh.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Tercetos morais e um dístico, de Marcos Siscar


o mundo não existe para acabar
num livro pois que talvez a última
página me diga que estou vivo

o último homem não será elevado
a bibliotecário dos sentidos
antes de ser enterrado com seus medos

a fidelidade não tomará o partido
de coragem mais fraco e de coração
educará a alegria nova dos começos

amigo é aquele de quem me despeço
a vida nos protege da solidão.

cena do filme: "Masculino,feminino" de Jean Luc Godard.

Prova, de Antonio Cicero


PROVA

Para José Miguel Wisnik

Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.

A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.


cena do filme: "Adeus meninos" de Louis Malle

Sair, de Antonio Cicero


SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


De: CICERO, Antonio. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.77.

cena do filme: "Lua de papel" de Peter Bogdanovich.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O cinema


Eu vivi profundamente
o cinema americano,
o italiano, o francês,
um pouco menos o inglês,
já o iraniano e o chinês ...
Metade da minha vida,
ou pelo menos um quarto,
eu não só vi, fui ao cinema,
muito mais do que eu já era,
a clamar de tanto ser.
Ser Scola e ser De Sica,
Billy Wilder e Kazan,
George Scott, Frederic March,
Magnani, Edwige Feullière ...
Me faziam existir,
revelavam plena a vida
que eu com eles aprendia
que podia conceber.
Truffaut, Fellini, William Wyler,
Kurosawa, David Lean,
Jeane Moreau, a Binoche,
Raimu, Brando, James Dean ...
Eu vivi profundamente!

Paulo Hecker Filho

cena do filme: "Ladrões de bicicleta" de Victorio de Sica.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

DAY DREAM, de Frederico Barbosa


Esse castelo
o que há de antigo
nosso no ar
vai se construindo

Tantas referências
nossas lentes
fora desse mundo
do vago ralo
da rapidez indiferente

Nesse nosso castelo
vão, circulando, vivos
Tantos Dukes, Claudes, Luchinos
e vários James amigos
nossos companheiros de sempre

Sonhos aprisionados
nessa torre
ilha
correm soltos
mar de marfim
por dentro.

cena do filme: "Rocco e seus irmãos" de Luchino Visconti.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Trecho de "O escritor"


as palavras descem por sobre a face do poeta como cortinas de água que se fecham sobre a face horrorizada do poeta está dentro do lado de dentro ou então fora o símbolo desce sobre a face descoberta a face descoberta sento-me na minha pequena caixa de vidro que é a página que me isola e me expõe as palavras ao poeta surgem sobem descem sobretudo nascem exasperante a lentidão da mão escrevo tudo isto ilegibilidade porque escrevo o acto de escrever a experiência de o exprimir sem exprimir isto é tentando isso descem mil escritas por onde descem surgem da ilegibilidade dum lado leis doutro leis tudo são regras a transgredir

Ana Hatherly, trecho de "O escritor"



foto: Cena do filme "Os incompreendidos", de François Truffaut.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Festival de cinema


Acontecerá em Taubaté, SP nos dia 09 e 10 de novembro um festival de cinema e dentro desse festival uma mostra competitiva de curtas amadores ou não em diferentes mídias.
Infelizmente o prazo para incrições da mostra foi estendido até dia 29 de outubro por falta de inscritos. O festival é organizado por gente super bacana, com patrocínio grande e prêmio para os concorrentes da mostra.

As datas do evento são:

Dia 29 de outubro - Fim para inscrição para mostra competetiva de curta amador

dia 9 e 10 de novembro – Festival de Cinema

Link para contato: http://www.aprendizesdecinema.com.br/

Léo Mariano

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Poemínimos, de Wilson Nanini


1)Concha
Sobre o brilho
esnobe da pérola, me fecho
em treva autofágica.


2) Artefato
Desvelado,
o perfume
perfura a cegueira.


3) Deserto
Ou a distância impossível:
a água parca
ou a sede imperecível.


4)
À porta da igreja,
dois leprosos
cobrando ingressos.


5)
Muro alto
de repente um pássaro
em vôo raso.

Schopenhauer, de Cláudio Daniel


Água
de nenhum
mar, gema
de extinta mina,
não mais
que o fulgor
de vidros
(cristaleira)
e o viço
de madeira
nova,
lua líquida.
O tempo
lacera
o verde
nos olhos
do gato,
lepra
das flores,
ácido
que corrói
toda cor
ou pele
em escuro
miasma,
peixes
do nada.
Este
é um ofício
doloroso,
uma ópera
ruidosa.
Porém,
tu foste
o tigre.

1999




foto: Cena do filme " Quem tem medo de Virgínia Woolf?"

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Invenção da Rosa


Atirei de carabina/penetrei a noite fria

Furei o eixo da lua/do leite escorreu poesia

Calei a boca da noite (sua voz que não se ouvia)

De todos os meus inventos/esse foi o mais sensato

Criei a Rosa-dos-ventos/ seu encarnado retrato

Corola de cata-ventos/ e seu espinho abstrato


Paulo Bandeira da Cruz

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

FOCOS, de Sebastião Uchôa Leite

Poesia é a sombra
Em guarda atrás de alguém
Ou na frente
Abrindo o caminho
Diminui ou alonga o vulto
Conforme o foco solar
Abre-se ou estreita-se
No jogo hiperrealista
Entre o eu e a margem.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009


O prazer era tão grande e intenso que acabei por abandonar o curso de Física e fui cursar Letras na USP. Lá, encontrei o maior túmulo do prazer relacionado à leitura que já vi: quem antes gostava de ler passava a fazê-lo apenas como obrigação; quem queria escrever era levado a desistir. Infelizmente, creio que o cenário continua basicamente o mesmo: a maioria dos cursos universitários de Letras nesse país ignora completamente a literatura contemporânea inventiva, poucos se preocupam em estimular a redação criativa entre os alunos. Pois bem, apesar da universidade, eu continuei gostando muito de ler e sentindo necessidade de escrever, embora quase tudo conspire contra.
Frederico Barbosa


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Graça, de Ecanaã Ferraz



Não saberia dizer a hora
em que me desfizera de tudo que não era teu,

quando cada coisa se deixou cobrir
por tua presença sem margens

e deixou de haver um lado
que fosse fora de ti.

Gênesis!


Já que pouca gente conhece poesia brasileira contemporânea resolvi criar esse blog, espero poder atualizá-lo com frequência!!