segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

ÉBRIO, de Felipe Stefani




a noite levou-me qual ébrio furacão dentro do sono a casa o perfume nada sabia do silêncio unânime levava o vinho a janela do quarto negro negro minha treva me chamava madame colocava gelo no copo ah caminho vegetal de tentações mesquinhas na manhã abri as asas na revolta de um insone o vôo sobre a cidade a cidade a cidade a chaga imediata dos vícios deixei-a entorpecida pálpebra negra enquanto o sol faiscava uma loucura unânime migrei para as visões distantes a aurora e o beijo afundou-a até a doçura do sonho besta soberba no outro dia era um poeta




***
Felipe Stefani

Filme: "Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O Presente, de Alberto da Cunha Melo






O que hoje recebes

e não podes pegar, guardar

em panos e papéis laminados,

é imperecível,

presente onipresente.

Estás com ele na chuva

e não temes que se desfaça.

Estás com ele na multidão

e não o escondes dos mutilados.

O que não existe para os homens

deles estará protegido,

o que os homens não vêem

não poderão espedaçar.

Eis o que não te denuncia

porque não tem face

nem volume para ser jogado no mar.

Eis o que é jovem a cada lembrança

porque não tem data

e série, para envelhecer.

O que hoje recebes

não pode ser devolvido.





quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Trabalhos do poeta, de Octavio Paz



Uma linguagem que corte o fôlego. Rasante, talhante, cortante. Essa deve ser a linguagem do poeta.

Uma linguagem de aços exatos, de relâmpagos afiados, de agudos incansáveis, de navalhas reluzentes.

Uma dentadura que triture o eu-tu-ele-nós-vós-eles.

Um vento de punhais que desonre as famílias, os templos, as bibliotecas, os cárceres, os bordéis, os colégios, os manicômios, as fábricas, as academias, os cartórios, as delegacias, os bancos, as amizades, as tabernas, a revolução, a caridade, a justiça, as crenças, os erros, a esperança, as verdades... a verdade!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009


Atração

o que me atrai na mulher
é essa sua capacidade de poetizar a vida
com as pernas abertas
a atrair meu pênis para suas funduras oceânicas
onde poemas em ovulação

(Carlos Pessoa Rosa)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009


Burocratas te advertem que a aurora foi abolida por tempo indeterminado. Comunicam que o trigo e o vento serão exportados para o arco-íris.
Aconselham-te a esquecer
o corpo ensangüentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai sobre aqueles que semeiam dúvidas. Mandam esvaziar tuas palavras de toda a possível reminiscência.
Burocratas te fiscalizam do alto dos edifícios, escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.

Francisco Carvalho

cena do filme: "Kafka" de Steven Soderbergh.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Tercetos morais e um dístico, de Marcos Siscar


o mundo não existe para acabar
num livro pois que talvez a última
página me diga que estou vivo

o último homem não será elevado
a bibliotecário dos sentidos
antes de ser enterrado com seus medos

a fidelidade não tomará o partido
de coragem mais fraco e de coração
educará a alegria nova dos começos

amigo é aquele de quem me despeço
a vida nos protege da solidão.

cena do filme: "Masculino,feminino" de Jean Luc Godard.

Prova, de Antonio Cicero


PROVA

Para José Miguel Wisnik

Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.

A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.


cena do filme: "Adeus meninos" de Louis Malle